Educação: uma luta por democratização e justiça social

Jorge Gonzalorena Döll – Rebelión – Carta Maior – A crise do sistema educacional, que exteriorizou com grande força por meio das demandas e mobilizações estudantis dos últimos meses, é só uma expressão particular de um problema muito mais global e profundo: a extrema desigualdade social atualmente imperante no Chile, da qual se beneficiam impunemente os poderes econômicos nacionais e estrangeiros que controlam e saqueiam o país, e a falta de efetiva representatividade do sistema político vigente.

Como sabemos, a abismal desigualdade social na qual vivemos corresponde a um estado de coisas que, depois da supressão da institucionalidade democrática previamente existente, foi implacavelmente imposto com métodos terroristas sobre o conjunto da população, e que se prolongou depois com a ativa e cínica cumplicidade das cúpulas políticas que, posando de “progressista”, mas avalizando a institucionalidade pseudodemocrática instaurada em 1990, governou o país nas últimas duas décadas.

O Chile de hoje está longe de ser o país exitoso que nos vendem diariamente. Trata-se, isso sim, de uma sociedade profundamente cindida entre uma reduzida minoria que vive na opulência e uma grande maioria que sobrevive a duras penas com salários baixos ou mesmo miseráveis, permanentemente assediada por um clima de insegurança trabalhista, cheia de dívidas, sem uma adequada cobertura de saúde, em um estado de vulnerabilidade econômica, social e jurídica.

Uma sociedade que se encontra, além disso, crescentemente desintegrada pelas realidades práticas que lhe foram impostas, que só abrigam e incentivam a implementação de projetos particulares, e pela repetição de um discurso de um exacerbado individualismo que, complementado com o articulado e persistente trabalho de desinformação e infantilização dos meios televisivos, menospreza e desgasta todo sentido de responsabilidade social.

É esse contexto social que explica a atual crise do sistema educativo, que só opera como um reprodutor da desigualdade. Se, nas últimas décadas, a educação privada ganhou terreno às custas da educação pública, dando origem a um sistema fortemente segregado, isso não ocorreu por supostos méritos da primeira, mas sim porque, deliberadamente, por meio da políticas educacionais implementadas em todos os níveis, impediu-se a segunda de assumir o papel que lhe corresponde.

Por sua parte, o impulso outorgado pelas políticas educativas a esta orientação privatizadora não respondeu a preocupações de caráter propriamente acadêmico. Respondeu, ao contrário, ao desejo de enriquecimento dos grupos socialmente dominantes que buscaram assim alcançar três grandes objetivos: 1) Atomizar a demanda social, debilitando eventuais focos de resistência nos espaços públicos; 2) Abrir novos espaços de negócios; 3) Reduzir substancialmente e tornar fortemente regressiva a carga tributária.

Na verdade, este último é o objetivo principal, do qual se beneficia amplamente o conjunto da classe dominante ao transformar o sistema tributário em um poderoso mecanismo reprodutor da desigualdade. O Chile segue sendo atualmente um dos países que ostentam uma das distribuições de renda mais desiguais em escala mundial. Essa desigualdade se torna ainda maior depois de descontados os impostos. Em outras palavras, os pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos no Chile.

Isso explica pelo fato de que três quartas partes da arrecadação tributária corresponde a impostos indiretos, que gravam com uma mesma taxa o consumo das famílias pobres e o das famílias ricas, e somente uma quarta parte correspondem a impostos diretos, que tributam a renda ou o patrimônio das famílias. Além disso, as famílias ricas consomem somente uma parte de sua renda e dispõem de um sem número de mecanismos legais e artimanhas de “engenharia tributária” para rebaixar ou sonegar impostos.

Por outro lado, ao contrário do que alguns sustentam, a carga tributária no Chile é comparativamente baixa, correspondendo a pouco menos de 20% do PIB. Na maior parte dos países europeus, essa carga oscila entre 35% e 50% do PIB. Essa diferença se explica principalmente pela baixa tributação dos setores de renda mais alta e das empresas que no Chile só pagam 17% sobre os seus rendimentos, mas cuja tributação real é muito real e, em muitos casos, inexistente.

A fraseologia neoliberal dos grupos dominantes sobre “o caráter subsidiário do Estado”, sobre a “focalização do gasto social”, a “capacitação individual”, o necessário “autofinanciamento” dos serviços públicos, etc., não é de modo algum desinteressada, mas se orienta para prover, precisamente, a justificação ideológica de políticas que permitam eximir-se de ter que garantir o financiamento de projetos de interesse coletivo centrados na realização do que se pode denominar como o bem comum da sociedade.

Daí sua demonização persistente do papel do Estado, dos projetos coletivos e da própria noção de justiça social que poderia inspirá-los. Daí também sua invocação entusiasmada do pensamento ultra reacionário de um Hayek, cujo darwinismo social o leva a sustentar sem o menor escrúpulo que a ideia de justiça social não tem atualmente “nenhum significado”, que é só uma “fórmula vazia”, um “atavismo” herdado instintivamente das épocas remotas na qual o ser humano vivia em pequenas hordas.

O que a privatização do gasto em educação significa é muito fácil de compreender. Uma família pobre não está em condições de pagar por um bom serviço educativo. Mas ocorre que são, precisamente, seus filhos que, no momento de ingressar no sistema escolar, mais o necessitam, uma vez que, em geral, são portadores de um menor “capital cultural”. Portanto, ao oferecer um serviço empobrecido, a educação pública jamais poderá tornar possível o ideal ético da “igualdade de oportunidades” que dela se espera.

Requer-se então dispor dos recursos necessários para melhorar substancialmente a qualidade da educação pública em todos os seus níveis, recursos que, no marco do atual sistema social, só podem ser obtidos pelos poderes públicos impondo uma contribuição forçada e permanente aos que ganham mais, ou seja, mediante o estabelecimento de um sistema tributário de caráter progressivo. E o mesmo vale para o financiamento de outras partidas do gasto social como ocorre, por exemplo, com a saúde e a habitação.

Mas, justamente por isso, a abismal desigualdade social atualmente imperante é também incompatível com a existência de mecanismos de geração e tomada de decisões de caráter efetivamente democrático. Uma livre expressão da vontade soberana da nação acabaria rapidamente com ela. É por isso que os privilégios de que gozam os poderes econômicos se encontram tão fortemente blindados por um sistema político institucional que foi desenhado ex profeso para burlar e manter na linha a vontade popular.

O certo é que a toda a institucionalidade vigente adoece de um enorme déficit de legitimidade e que, por isso mesmo, nos encontramos atualmente em um impasse entre, por um lado, o regime plutocrático que se escuda nessa institucionalidade e na classe política que se aproveita dela e, por outro, a grande força desencadeada pelo descontentamento e mobilização popular. A luta por uma transformação profundar do sistema educacional revela-se assim como uma grande luta pela justiça social e a democratização do país.

Tradução: Katarina Peixoto

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